Era uma vez uns responsáveis políticos que olharam para a sociedade, viram as desigualdades que a incompetência deles não resolveu, e decidiram que caberia à Escola fingir que somos todos iguais e temos todos os mesmos direitos. Não somos. Não temos. E também já não temos Escola, porque quase nada dela sobrou!
Durante décadas, vivemos num sistema asfixiante em que só era doutor o filho do
doutor, e em que licenciatura era sinónimo de bom salário, cabendo aos pobres aprender ofícios mal pagos e sem valor.
Para anular esta injustiça, a democracia abriu, e bem, a Escola a toda
a gente, e foi alargando progressivamente a escolaridade obrigatória, mas não cuidou
de encontrar respostas para a diversidade trazida pela massificação. Pior que isso, destruiu o bom ensino
profissional existente, a pretexto de que toda a gente, se quisesse, deveria
poder chegar à universidade. Foi um dos primeiros erros, que estamos já a
pagar, porque faltam pedreiros, mecânicos, electricistas, canalizadores, que por acaso ganham bem melhor do que muitos professores, médicos ou enfermeiros.
Coitados dos actuais alunos que querem aprender com seriedade uma profissão! Têm de frequentar cursos profissionais desprestigiados, onde infelizmente desembocam sem travão nem direcção os que não têm vocação nem
motivação para nada.
E coitados dos alunos que cedo na vida ousam sonhar com um ofício! A Escola adia-lhes
o sonho e obriga-os a manterem-se num percurso comum, rouba-lhes anos da vida
que querem ter, quantas vezes levando a que talento e vontade fiquem pelo caminho, com perdas e danos irreparáveis!
Obrigados a uma Escola que não se adequa à sua vocação e às suas
capacidades, o que resta a muitos miúdos senão arrastarem para as salas de aula
o desinteresse, a desmotivação, a frustração ou os maus modos ou a agressividade?
Que ironia, serem simultaneamente vítimas e culpados da desgraça!
Mas, então, que resposta se conseguiu encontrar para esta
diversidade e esta amálgama indiferenciada de mundos?
O nivelamento por baixo! A auto-negação
da Escola!
Apesar de tudo, durante muitos anos, a dita Escola ainda conseguiu resistir, e cumprir-se diariamente.
Anos houve em que em que brotaram Clubes e actividades espontâneas, cresceram projectos arrojados, se formaram gerações de vários níveis sociais, e se criaram laços entre professores e alunos. Havia tempo para tudo, e tudo se fazia com prazer, por prazer. A Escola vibrava e cumpria com vontade a sua função.
A partir do momento em que o nivelamento por baixo se tornou regra cada vez menos
velada, a Escola deixou de ser um verdadeiro ascensor social.
Querendo ser o que deveria ser (mas já não era) conseguiu deixar de ser o que era e, desastradamente,
desarranjou-se para se afastar cada vez mais do que deveria ser, a ponto de não conseguir ser útil a quem mais dela precisa. E sangra desumanamente os aparentes responsáveis pelo seu falhanço, ou seja, os professores, e sangra desalmadamente as cobaias das suas delirantes mirabolâncias, ou seja, os alunos e as famílias.
Sejamos realistas, o elevador social está há muitos anos nos gabinetes de explicações
e no ensino privado, pagos por quem pode. Para os outros, a Escola não é ascensor,
é um foguete molhado: foi feito para subir, mas não vai a lado nenhum.
A sociedade mudou muito, e em nome dos direitos, da inclusão, da tolerância e da compreensão, em nome do respeito
pela diversidade, desapareceu a exigência, desvalorizou-se o saber-estar, o
saber-ser, a disciplina, o respeito...; a própria tolerância se gastou por
excesso de uso.
Inventou-se uma Escola condescendente com mau comportamento,
insolência e indisciplina. Sempre em busca da suposta igualdade de
oportunidades, transformou-se a Escola num permanente laboratório de modas pedagógicas e ideias peregrinas. Retirou-se-lhe estabilidade, coerência e
sossego, e sem isso o conhecimento e o saber foram sacrificados, desvalorizados, afastados.
A pretexto da modernidade e das novas exigências laborais, infestaram-se as
escolas de tecnologia de valor pedagógico inflacionado, como se sozinhas originassem o acto de ensinar e de aprender.
As novas correntes das ciências da educação, da psicologia, da pedagogia, colocando com justeza a
criança no centro das atenções, alimentaram as mudanças estruturais na Escola e na sociedade, desvalorizando a gravidade das faltas de educação, o desrespeito e a ditadura da criança sobre o adulto, conduzindo à perda de autoridade
parental, educativa e escolar. Palavras como "exigência" ou "rigor" ou "esforço" ou "trabalho" ou "regras" foram rejeitadas como se tivessem lepra, porque se tornaram símbolos de um modelo de Escola considerado ultrapassado e, reconheçamo-lo, cada vez menos compreendido, desejado ou aceite.
Por outro lado, o famigerado capitalismo selvagem transformou os lares em dormitórios
cansados, onde falta tempo, disposição e paciência aos pais para educar e
acompanhar os filhos no seu crescimento, como gostariam e deveriam. Compensam-nos com presentes e com uma capitulação
perante birras e caprichos e faltas de respeito, que desistiram de corrigir ou
que, pior ainda!, já nem sequer conseguem identificar como inadmissíveis.
Na prática, esta atitude não é muito diferente da adoptada por alguns professores, quando prometem prometem bombons ou distribuem chocolates para premiar bom comportamento nas aulas...
A uns e a outros tem faltado a coragem, a força e a firmeza para dizer NÃO, para imporem a sua autoridade e para se fazerem respeitar. Todos cederam, e todos perdem, de um modo ou de outro.
O que é certo é que a Escola se degradou, por culpa dos pais (acharam os professores), mas sobretudo por culpa dos professores, acharam os pais e a tutela; e para combater a incompetência de uma minoria, passou-se a desconfiar de todos, e da sua capacidade para exercer com profissionalismo a função.
Devagarinho, à docência foi sendo assim roubada liberdade e legitimidade para gerir a sala de aula e sem elas a dignidade no exercício da
profissão saiu molestada.
Quando a tutela decidiu desconfiar dos professores, retirou-lhes decisão e enterrou-os em prestações de contas trimestrais, mensais, semanais, diárias, aula-a-aula, aluno-a-aluno... Os professores foram reduzidos a intelectuais da burocracia, obrigados a fundamentar e justificar tudo, em horas
inglórias de elaboração de projectos, relatórios, planos e actas inúteis, sorvedouros
de tempo, da energia e da disponibilidade mental e emocional de que tanto precisam para darem o seu melhor na sala de aula. A tutela infernizou-lhes a vida, e eles consentiram. Desistiram? Esqueceram-se de ter garra para se impor? Pouparam-se? Anularam-se?
Em sentido contrário, aumentou a falta de exigência e de rigor na formação-base de professores.
Há muitos anos que os melhores estudantes não querem ser docentes. Não é de agora!
Quantos se tornaram professores porque não conseguiram ser mais nada? Quantos, nos últimos anos, tendo classificações que lhes abririam outras opções, escolheram ser professores, por vocação e convicção e vontade de mudar o mundo?
Há
quanto tempo as Escolas Superiores de Educação aceitam alunos com médias de 10, ou menos?
Quantos destes jovens se tornaram professores sem conseguirem eliminar erros científicos
de palmatória que já levaram do ensino obrigatório e que às escolas trouxeram de volta,
contribuindo, também eles, para a degradação da qualidade do ensino? Mas parece que ninguém viu as consequências que se adivinhavam.
Nos anos 80, nos velhos liceus renomeados Escolas Secundárias, os professores
recém-saídos das universidades, “provisórios” inexperientes, humildes na sua condição, eram olhados de soslaio pelos mais velhos, por serem novatos,
e precisavam de mostrar o que valiam para merecerem ser tratados como “colegas”, palavra-senha para entrada no mundo de sabedoria e respeito inerente ao professor.
Diferentemente, nos anos 2000, alguns dos novos professores saídos de Escolas Superiores de Educação chegavam de nariz empinado às escolas, cheios de teorias, inchados de auto-convencimento, e passando desdenhosos atestados de ignorância
aos “velhos”, que consideravam incapazes
de ver a Escola com novos olhos.
Desconfio que alguns destes novos olhos "iluminados" só acrescentaram miopia a uma Escola que já não via muito bem ao perto, mas que agora também já não vê nada
ao longe...
Com formações diferentes e perspetivas diversas sobre a Escola, os professores
dividiram-se dentro das escolas e espalharam-se por mil sindicatos, umas vezes esperando deles a defesa de interesses directos, outras vezes apenas ao sabor de simpatias
político-partidárias.
O clima de trabalho degradou-se, e as estruturas sindicais centraram a luta em questões monetárias e de carreira, no convencimento de que não era necessário
batalhar por outras causas, porque nada faria abanar os fundamentos da sala de
aula. Talvez por isso nunca se tenha ido ao fundo dos problemas, e, por exemplo, se tenha consentido sem protesto nessa clamorosa desvalorização do conhecimento e da formação que foi a desbonificação de
tempo de serviço por obtenção de graus académicos acima das licenciaturas pré-Bolonha.
A verdade é que, apesar de todas as contrariedades, dentro da sala de aula, usando da sua autonomia, o bom professor ainda achava que se realizava,
e que a sua competência, capacidade de trabalho, entrega, sensibilidade e sentido de responsabilidade eram suficientes para fazer acontecer Escola, e para que esta mantivesse a sua razão de existir. Porém, esta mesma autonomia permitia que o mau professor se sentisse ao abrigo de críticas e fiscalizações, confiante de que ninguém daria pelas suas falhas ou ousaria apontá-las.
Dentro da sala de aula, para o melhor e para o pior, cada professor ergueu a sua barricada.
Todavia, aquando da divisão aberrante da carreira entre Titulares (os supostos “bons”) e Não Titulares (“a ralé”), a classe docente tremeu e revoltou-se. Quem não conhecia incompetentes promovidos a Titulares? Quantos dos melhores não se sentiram humilhados? Quantos conscienciosos prefeririam não ser Titulares? Quem não viu a arrogância a querer soltar-se, mesquinha, nas asas prepotentes da “Titularidade”?
E com a decisão de que o professor teria de ser avaliado para poder progredir profissionalmente abanaram os inseguros, tremeram os incompetentes, feriram-se os orgulhosos e a aula, Templo de Educação, viu-se exposta, vulnerabilizada, ameaçada, invadida.
A revolta geral e uma manifestação sem paralelo varreram aquela divisão da carreira, mas ficou uma avaliação de desempenho
que permite as maiores injustiças, porque nem sempre se tem a hombridade e a humildade de reconhecer competência e
autoridade aos pares, porque falta às vezes grandeza humana e profissional para elevar a
avaliação acima de simpatias, antipatias, guerrilhas e contas por ajustar.
Acresce que, para, supostamente, evitar injustiças e garantir o rigor e a objectividade da
avaliação, a tutela inventou a necessidade de se apresentarem (ainda mais) evidências de tudo e de mais alguma coisa. Não deve haver profissão mais escrutinada do que a de professor...
Ora, quem não conhece aquele avaliado que nunca deu um minuto a mais à Escola,
mas que no ano em que é avaliado (justamente nesse ano, por acaso...) se desdobra
em actividades, iniciativas e projectos? Quem é que não sabe daquele que nunca exerceu um cargo (porque nenhuma gestão lhe reconheceu capacidade
para isso ou porque teve habilidade para lhe escapar), mas que consegue, em ano de avaliação, surgir como um
paladino do voluntarismo, da entrega, da pedagogia e da didáctica, e engendrar grelhas e evidências mil e todo um folclore com que rasteira e ultrapassa quem anda há anos a
deixar o cérebro, as tripas e o coração na escola?
Foi nisto que deu a avaliação de professores, e esta é uma das causas da
desgraça.
Curiosamente, o que muitos dos meus colegas contestam não é bem esta injustiça, preferindo escolher como alvo as cotas para progressão na carreira, como se não fosse toda a orgânica da avaliação de desempenho que deve ser posta em causa, porque é ela que fere onde não deve, por assentar na mesma falsidade e inutilidade que arruína o sistema educativo no seu todo.
A avaliação de desempenho é apenas uma peça dentro de uma parafernal engrenagem mil vezes desmontada e remontada, com cremalheiras recauchutadas, calhas gastas, rodas fora do sítio e veios secos,
tudo aprimoradamente envolto na incessante novidade, sempre trazida em lindo embrulho de modernidade, para que de fora se acredite que é bom, eficaz e mágico!
Acontece que a magia nunca passou de embrulhada, e não só não se eliminou a incompetência,
como se desprestigiou e desmotivou a competência. É quase um milagre, mas ao
contrário.
Admitamos que a complexa relação entre pares influencia muito do que se passa nas escolas, e tem na gestão escolar uma das suas mais peculiares
expressões.
Defende-se hoje o regresso a um modelo de gestão assente
no sufrágio universal dos docentes, como no passado se contestaram os
colegas Presidentes de Conselho Directivo mais exigentes e capazes de criar
equidistância em relação aos pares.
Não é verdade que houve Presidentes de Conselho Directivo eleitos por serem “uns
gajos porreiros e que não chateiam”, em detrimento de candidatos mais completos
e competentes, mas também, e por isso mesmo, mais rigorosos? E não é verdade que este tipo de eleição, baseada numa certa “conveniência”, deixou
de poder acontecer no actual modelo de gestão?
E não é incontestável que o novo modelo de gestão deu aso a prepotência e autoritarismo?
Mas não é também indiscutível que os Diretores são, eles próprios, vítimas do desnorte da tutela, entalados entre o cumprimento da lei, o descontentamento dos professores, a indisciplina dos alunos, a pressão dos pais e a percepção do absurdo que tudo isto é?
E não é ainda verdade que, para alguns de nós, nunca nenhum poder satisfaz, nunca nenhuma autoridade é reconhecida?
Parece-me ainda que alguma da contestação docente a este regime de gestão escolar resulta
do não reconhecimento do direito e da legitimidade que outros membros da
comunidade escolar (pais, assistentes técnicos e operacionais) têm, também eles,
de escolher quem dirige a instituição a que estão ligados. Será sobranceria? Complexo? Medo de perda de poder? (Qual poder???)
Não sei. Mas sei de um sindicato que alberga todos os profissionais de
educação, e sei de quem acredita que esta aliança conseguirá o que até hoje não se alcançou, porque, diz-se, “juntos somos mais fortes”
Resta saber se esta ideia de união não levará, depois, quando assentar a poeira, a uma diluição do nosso estatuto e à desvalorização da já pouco especial carreira especial dos professores. Vejo perigos.
Outra das queixas dos professores é a perda do seu poder de compra, que muitos compatriotas nossos consideram uma tentativa egoísta de obter privilégio
em tempo de guerra.
Indiscutivelmente, todos deveriam ter direito a salário digno, mas acontece que proletarizar os professores, reduzir-lhes o poder de compra, é privá-los de acesso à
cultura e à actualização científica, indispensáveis para que possam ensinar com qualidade e abrir horizontes aos alunos. Não falo de motivação nem de
felicidade nem de bem-estar nem de alegria no trabalho; falo de qualidade do ensino.
Num mar de famílias condenadas a viver com a indigência do salário mínimo,
a Escola e os professores têm de ser olhados como a Esperança que abre perspectivas de um
futuro melhor para as próximas gerações, e valorizados como tal. Ora isso não se consegue esvaziando o
ar da bóia de salvação e enchendo‐a de areia!
Afinal, defender que um professor não deve ganhar melhor, porque há quem ganhe mal, é consentir que a Escola perca qualidade, e é prejudicar o futuro dos jovens, das suas famílias e do país. Não pode haver quem queira isso.
Nesta insanidade, só triunfaram os grandes grupos editoriais que, depois de canibalizarem a concorrência das pequenas editoras, colonizaram a Escola, oferecendo "papa feita" a professores exaustos, e uma miríade de materiais que abanavam os orçamentos familiares e agora sugam o Estado que somos todos nós, porque nada é de graça e somos sempre os mesmos a pagar, de uma maneira ou de outra...
Se ao menos houvesse formação contínua de qualidade para os professores, neste
deserto!
Se não a tivessem transformado num faz-de-conta obrigatório que pouco ou nada
acrescenta profissionalmente...
Hoje, o caso mais gritante é o da Capacitação
Digital Docente, que não ensina nada que a maioria não saiba já, e que não altera a iliteracia digital de quem não aprendeu por si ou com colegas, durante a pandemia,
quando tivemos de descobrir como fazer para ensinar online.
Salvo honrosas excepções, a formação contínua é, admitamo-lo, perda de tempo e
de dinheiro. Como a Escola. À imagem da Escola que pouco ensina aos
alunos, a Formação Contínua pouco acrescenta aos professores.
E, no entanto, resistindo à impertinência, um professor culto, curioso, vivaz e actualizado é luz que se acende na vida
de um miúdo. Já um professor formatado, cinzento, apático e abúlico é breu colado na cabeça dos alunos, mas é nisto que a tutela nos tem tornado, ao longo das últimas
décadas.
O país e a modernidade não precisam nem querem que voltemos a uma Escola de medo, palmatória e reguada, a um Ensino de decorar e papaguear, nem é isso que eu defendo, mas a Escola não sobreviverá se não repensarmos todo o sistema educativo, reconhecendo e definindo que aos professores cabe ensinar, que os alunos vão à Escola principalmente para trabalhar e aprender, que às famílias cabe educar os filhos, e que todos têm de ter condições para que cada qual, no seu galho, faça o que lhe compete, sabendo que todos são seiva para a mesma árvore. Só assim haverá fruto. Só assim teremos, amanhã, gerações que saibam e possam cuidar si, de nós e do mundo.
Está mais que visto que, nisto da Educação, o mais fácil de resolver é a contagem integral do tempo
de serviço e a progressão na carreira docente.
Difícil, mesmo difícil, é reestruturar a Escola, para que se
reinvente e reencontre a sua função, a sua essência e o seu
prestígio, e seja capaz de recuperar a alegria, a espontaneidade e a qualidade que perdeu.
Uma Escola que não permite a realização e o crescimento pessoal, profissional e familiar dos seus intervenientes, e que não serve a sociedade, não serve para nada.
(Obviamente, ter escrito este texto põe-me a jeito para levar pancada.)
(Obviamente, espero que não digam outra vez que o Mia Couto é que é o autor.)
(Obviamente, não aplico o Acordo Ortográfico.)