DELÍRIOS ESCREVINHADOS
Desci as escadas até ao topo e apaguei a luz, para não tropeçar nos móveis do corredor vazio.
No quarto ao fundo, o avô entrevado seguia pela rádio o final cor de fogo de E Tudo o Vento Levou.
Sentei-me à sua frente, peguei no jornal e comecei a ler baixinho as legendas, porque o velhote era surdo e precisava sempre que alguém o ajudasse a juntar as sílabas.
Mal eu tinha começado, o avô deu um salto:
- Grande novidade!... Porcaria de filme!... Tanta fama, tanta fama... E um gajo aqui a perder tempo...!
Lançou-me um olhar traquinas, e desafiou, falando-me quase ao nariz:
- Vai um joguinho de dominó? Ah...? Ou de cartas? Aposto que te perco!
- Sempre quero ver isso... – acedi eu, só para o contrariar.
Enquanto ele foi num instante buscar o piano de cauda à sala, eu fui baralhando as partituras, para ele distribuir jogo assim que voltasse.
Sentámo-nos os três a ensaiar uns arpejos. O avô tocava um doble-quinas e eu acompanhava, soprando de vez em quando pela palheta do baralho, a fazer vibrar o ás de copas.
Quando engoli a palheta e caí com sentidos, quadrado no tecto, o avô levantou-se num ápice e exclamou, eufórico:
- Tás a ver!? Eu bem disse que te perdia!
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