23 julho 2020

Memórias Cercalinas

Memórias cercalinas*

I - Os Rebuçados do Chaveiro

Teria eu uns três anos quando entrei pela primeira vez na taberna do Chaveiro, que era de um grande sportinguista.

À tardinha, o meu padrinho ia à venda dar dois dedos de conversa, e às vezes levava-me às cavalitas.

O Chaveiro tinha aqueles olhos escuros, doces como o sorriso que lhe arrebitava o bigode farfalhudo. Alegrava-se de me ver, e eu sentia-me bem-vinda.

Mas não demorava nada que não me perguntasse:

- Atão, és do Sporting ou do Benfica?

O meu padrinho, benfiquista ferrenho, tinha-me injectado benfiquismo como uma vacina, mas um rebuçado era um rebuçado, e para ganhá-lo era preciso agradar ao perguntador.

- Sou do Sporting...

- Assim é que é! O Benfica não presta!... Pega lá um rebuçado de melhadura! - e virava as costas ao balcão.

Os meus olhos viam o frasco de vidro a sair da prateleira, a tampa a girar, a mão a entrar pelo bocal, e por fim um rebuçado de bigode risonho a estender-se para mim.

Eu agradecia, ria-me, começava a desembrulhar o rebuçado, e dizia, matreirinha:

- Chaveiro... Eu sou do Benfica...

- Ah, marota, que já me enganaste! - respondia ele, fazendo-se zangado.

E era sempre a mesma cena, que acabava em gargalhada geral. Eu, na minha ingenuidade, convencida que o enganava. Ele, bondoso e divertido, a gozar aqueles segundos de felicidade por me obrigar a dizer que era do Sporting, sabendo-me benfiquista.

Na verdade, ganhávamos os dois, naquela cumplicidade. E eu adorava-o!

Mesmo já adulta, e o Chaveiro muito mais velho, sempre que nos víamos nos alegrávamos, e acho que os dois nos lembrávamos das cenas do rebuçado.


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* Memória Cercalina = Recordação de vivências em Cercal do Alentejo

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