Memórias cercalinas*
I - Os Rebuçados do Chaveiro
Teria eu uns três anos quando entrei pela primeira vez na taberna do Chaveiro, que era de um grande sportinguista.
À tardinha, o meu padrinho ia à venda dar dois dedos de conversa, e às vezes levava-me às cavalitas.
O Chaveiro tinha aqueles olhos escuros, doces como o sorriso que lhe arrebitava o bigode farfalhudo. Alegrava-se de me ver, e eu sentia-me bem-vinda.
Mas não demorava nada que não me perguntasse:
- Atão, és do Sporting ou do Benfica?
O meu padrinho, benfiquista ferrenho, tinha-me injectado benfiquismo como uma vacina, mas um rebuçado era um rebuçado, e para ganhá-lo era preciso agradar ao perguntador.
- Sou do Sporting...
- Assim é que é! O Benfica não presta!... Pega lá um rebuçado de melhadura! - e virava as costas ao balcão.
Os meus olhos viam o frasco de vidro a sair da prateleira, a tampa a girar, a mão a entrar pelo bocal, e por fim um rebuçado de bigode risonho a estender-se para mim.
Eu agradecia, ria-me, começava a desembrulhar o rebuçado, e dizia, matreirinha:
- Chaveiro... Eu sou do Benfica...
- Ah, marota, que já me enganaste! - respondia ele, fazendo-se zangado.
E era sempre a mesma cena, que acabava em gargalhada geral. Eu, na minha ingenuidade, convencida que o enganava. Ele, bondoso e divertido, a gozar aqueles segundos de felicidade por me obrigar a dizer que era do Sporting, sabendo-me benfiquista.
Na verdade, ganhávamos os dois, naquela cumplicidade. E eu adorava-o!
Mesmo já adulta, e o Chaveiro muito mais velho, sempre que nos víamos nos alegrávamos, e acho que os dois nos lembrávamos das cenas do rebuçado.
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* Memória Cercalina = Recordação de vivências em Cercal do Alentejo
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