AS PRESIDENCIAIS E O ALENTEJO -13 CAUSAS DO TERRAMOTO
Quando o Alentejo anda nas bocas do mundo é quase sempre por más razões. Azar o nosso!...
Fomos notícia na noite das Presidenciais, e durante alguns dias mais, e não estou satisfeita ("sastefêta", em alentejano) com o que ouvi.
Proponho que façamos juntos uma reflexão sobre as razões pelas quais o Alentejo mais profundo foi tão falado, ou seja: o que levou tanto alentejano a votar em André Ventura.
Na minha perspectiva, há motivos que não foram valorizados, e por isso enumerarei os que me parecem mais importantes:
1. Relativamente às eleições presidenciais, propriamente ditas:
a) As televisões deram mais tempo de antena a quem é telegénico e capta audiências, mais valor a um candidato do que aos outros. Os candidatos preocuparam-se mais em falar de um outro candidato do que do seu próprio projecto. Os comentadores políticos debruçaram-se quase sempre mais sobre um candidato do que sobre os outros.
b) Governo e Presidente da República desvalorizaram este acto eleitoral e desprezaram o voto de emigrantes, de confinados em lares, de quarentenados em casa e de isolados profilacticamente, talvez porque a vitória de Marcelo estava à partida garantida.
c) Os partidos políticos agiram segundo os seus próprios interesses:
O PS assobiou para o lado e colou-se a Marcelo, demitindo-se da responsabilidade de apresentar candidato próprio.
O PSD assobiou para o lado, e colou-se ao seu candidato natural, à partida já eleito.
O CDS nem para assobiar teve força.
Os partidos à esquerda do PS só olharam para os seus umbigos e as suas estratégias desfasadas da realidade, e não percebendo ou não querendo perceber o que estava a acontecerque os obrigasse a mudar de estratégia.
O PCP, outrora "dono" do Alentejo, onde pôs e dispôs, partiu e repartiu e ficou com a melhor parte, quando para isso tinha arte, encostou-se e foi-se apegando aos cargos autárquicos que conseguiu manter, criando clientelas sustentadas a troco de emprego em câmaras e freguesias, sem perceber que o seu eleitorado fiel foi desaparecendo na proporção em que morria, e sem se esforçar para conseguir chegar a um eleitorado mais jovem.
Para além destas miopias partidárias,
2) Nas últimas décadas, os sucessivos governos foram votando o Alentejo - e todo o interior do país - ao isolamento, ao esquecimento, ao subdesenvolvimento, virando a sua atenção para o litoral, com maior densidade populacional (mais eleitores...), mais dinâmica empresarial e mais emprego.
3) Há muito que o eleitorado português deixou de ser fiel a um partido. Essa fidelidade foi uma herança das clivagens ocorridas nos anos subsequentes à revolução de 1974, e que se foi perdendo à medida que os anos apagaram memórias, diluíram ódios e arrefeceram militâncias.
Os dados provam que a maioria dos cidadãos não vota sempre no mesmo partido; vai alterando o seu voto, em função das circunstâncias, das lideranças e, sobretudo, em função daquilo que pensa ser quem melhor vai ao encontro do seu desejo de melhores condições de vida.
4) É sabido que grande parte do actual eleitorado não conheceu as agruras que o Estado Novo impôs ao país, e principalmente ao Alentejo, pordemais explorado e empobrecido. Mesmo muitos daqueles cuja infância foi vivida com o retrato de Salazar na sala de aula não eram suficientemente crescidos para ter consciência do rigor do regime e para guardar memória política desses tempos negros.
5) Como nunca existiu um programa coerente para verdadeira integração das minorias na comunidade e no mercado de trabalho, consente-se que continuem no seu mundo próprio, à medida que se deixa alimentar a ideia de que vivem à margem da sociedade, de que são protegidas e de que estão imunes à autoridade policial e à justiça. E isto é mais gritantemente sentido no Alentejo interior, onde se concentram grandes comunidades ciganas.
6) Depois de décadas de abandono das terras e do fim da célebre reforma agrária, o Alentejo viu surgir grandes explorações agrícolas necessitadas de mão-de-obra, que não encontrou nos residentes. Os alentejanos, outrora carecidos de trabalho e obrigados ao sacrifício de serem explorados numa herdade qualquer, recusam hoje o trabalho duro ao sol e à chuva, sobretudo se puderem auferir de apoios no desemprego.
Quando isto acontece, e os empresários recrutam imigrantes baratos em busca de melhores condições de vida, a pacatez conservadora de aldeias e vilas é abalada, para desconforto e descontentamento dos residentes que olham os estrangeiros com a mesma desconfiança com que, nos anos 60, os franceses olhavam os milhares de portugueses residentes nos "bidonville", que tinham passado a fronteira a salto e procuravam uma vida melhor.
7) As gerações nascidas depois de 1974 cresceram livres e com algum conforto. Foram apaparicadas por pais que, tendo sido privados de uma infância digna, quiseram dar tudo aos filhos; tudo, menos valores e educação. À opressão da ditadura substituiu-se uma liberdade sem limites e que ninguém aceita que possa ser posta em causa.
8) A necessidade de aumentar o rendimento mensal das famílias e de garantir condições dignas empurrou pais e mães (já filhos da Democracia) para uma correria incompatível com o cumprimento da sua essencial e insubstituível cota-parte na educação dos seus próprios filhos, compensando-os com a satisfação de vontades e de caprichos e com a oferta de bens efémeros e materiais, o que não incomodou os poderes, já que contribuiu para alimentar um consumo que serve a Economia. Se quem sabe pouco não pode ensinar muito, menos ensina se não tem tempo...
9) A Escola, livre da tutela afunilante do Estado Novo, massificou-se, asfixiou-se na necessidade de garantir igualdade de oportunidades, enredou-se em funções que deveriam incumbir a outras áreas do Estado, à sociedade e às famílias, e foi desistindo de ser rigorosa e exigente. Aceitou relegar para segundo plano a sua principal função , que é ensinar, formar cidadãos esclarecidos.
A Escola de hoje ilude-se a si própria no seu igualitarismo, quando todos sabemos que os que podem pagar explicadores e centros de estudos ou colégios privados continuam a ter mais oportunidades que os de baixos rendimentos.
Na ditadura, a escola era um elevador social vedado aos menos favorecidos; a de hoje é uma fachada de onde se sai com diplomas de pouco conhecimento, pouca cultura, pouca curiosidade intelectual e pouca cidadania.
Disfarça-se esta perda da essência com a tecnologia, como se um computador e o acesso à Internet substituíssem a capacidade de resolver dilemas morais, bem como o valor do desenvolvimento do raciocínio e do discernimento, e fossem o mais importante para o desenvolvimento das capacidades sociais e intelectuais de um ser humano. A falta de um computador "apenas" destapa, acentuando-a, uma desigualdade que já existia e contra a qual não foi feito tudo o que era possível.
10) Os sucessivos governos falharam nas políticas económicas que, elas sim, ao garantirem empregos, e salários, deveriam ter há muito eliminado as profundas assimetrias que persistem após quase 50 anos de Democracia, adoçados até por milhões de fundos comunitários mal geridos por uns, bem aproveitados por alguns, mas desaproveitados para o essencial que era o desenvolvimento do país e a inerente melhoria da vida das pessoas.
11) As forças políticas surgidas nos últimos anos não foram capazes de não se encurralar a si próprias. Adoptaram muitas vezes causas que, por mais justas que sejam, não são as que a maioria das pessoas vêem como mais prementes. Quem não tem casa (ou a perdeu na crise), quem se sente indignamente tratado como se fosse coisa e abandonado pelo Estado não aceita que a prioridade seja que os animais deixem de ser coisas ou que lhes sejam construídos abrigos. Quem não tem dinheiro para carne ou peixe estará muito preocupado com os danos ecológicos de uma exploração agrícola? E isto não significa insensibilidade - é só uma questão de prioridades...
12) Acresce que, paulatinamente, anos após ano, os poderes instalados em torno do Estado e das autarquias minaram a democracia e a confiança nos principais agentes políticos.
Com mais ou menos poder, os partidos fecharam-se sobre si próprios, confinados à sua visão e aos seus interesses. Projectaram dirigentes oriundos das juventudes partidárias, gente com uma formação política superficial, impreparada e inculta mas desmedidamente ambiciosa, sem verdadeiro currículo na vida real mas que pôde ascender a cargos de liderança de topo, média ou intermédia.
Criaram-se casulos de políticos, empresas e famílias, incapazes de gerar a borboleta da honestidade, da competência, da lisura e sobretudo do interesse público, que é o de todos nós.
A corrupção, os processos judiciais intermináveis, os julgamentos adiados e as prescrições geraram nas populações uma revolta muda, um sentimento de insatisfação expresso em conversas com amigos, colegas ou familiares, e que só estava à espera de alguém que lhe desse voz.
13) A comunicação social, principal veículo de informação, há uns anos bem separava-se entre jornalismo sério e jornalismo tablóide, mas deixou que essa fronteira se diluísse, se apagasse até.
As três estações de televisão tendem a alinhar desde há anos com uma prática de superficialidade e de sensacionalismo que dantes condenavam no Correio da Manhã, e depois na CMTV. As audiências falaram mais alto do que a verdade, a objectividade e a qualidade.
Os pivôs de noticiários e os naipes de comentadores preocupam-se cada vez mais em fazer passar a sua opinião pessoal, não raro partidaria ou politicamente alinhada, a que têm direito, mas que não deveriam ter o direito de nos impingir. E com ela influenciam a opinião pública.
O futebol apoderou-se tanto da antena que os debates sobre ele duram mais tempo que os debates com os candidatos eleitorais.
Os programas de entretenimento, fúteis e superficiais, preenchem o horário nobre, relegando para horas inacessíveis ou para o canal 2 da RTP conteúdos relevantes, de temáticas "sérias", bom cinema ou teatro, e que poderiam contribuir para uma melhor e mais informada cidadania, e para um Portugal mais tolerante e mais aberto ao mundo.
Ao mesmo tempo que assistimos à morte de jornais de referência e à redução de vendas dos jornais e revistas sobreviventes, vemos crescer as redes sociais e a sua influência. Impuseram-se como veículos de difusão de todo o tipo de mensagem e onde tudo é permitido, reflectindo o carácter e o pensamento dos seus autores, nem sempre transparentes, nem sempre com fundamento, quase nunca solidamente fundamentados. O "Achismo" impera, e as intenções nem sempre são as melhores.
Apesar de chegarem (e interessarem) a uma minoria de cidadãos, as redes sociais ganharam o peso que foi perdido por uma imprensa responsável e de qualidade, com naturais consequências na nossa capacidade de formular e emitir opinião e de pensar o país e o mundo, numa perspectiva que olhe e tente compreender o presente à luz do conhecimento da História, da ciência e do pensamento crítico, com tudo o que eles têm para nos ajudar a compreender, a interpretar a realidade e a fazer escolhas conscientes e esclarecidas.
SOBRESSALTO
Nestas eleições, a votação no candidato posicionado em 3º lugar é muito minoritária, e expressou-se quase só no sigilo das urnas. São ainda poucos os que, abertamente, assumem a sua proximidade ao partido de extrema-direita, talvez porque, no fundo, tenham consciência de que há algo de estranho ou errado na sua escolha.
Os partidos e os responsáveis nacionais e locais ainda vão a tempo de perceberem que é preciso mudar a agulha, que é preciso dedicação à causa pública, verticalidade e honestidade no exercício dos cargos, de pensarem que têm de olhar para este assunto com a atenção que ele justifica e a preocupação que ele exige.
Achar que a culpa é dos alentejanos, dos pouco escolarizados e dos analfabetos políticos é um mau ponto de partida para a reflexão que se impõe.
Quem está morto de sede quer água e, se for preciso, bebe com as mãos; é pouco relevante que a água que lhe oferecem tenha sido comprada, roubada, ou que alguém tenha matado para a obter, porque a sede é uma necessidade irracionalmente básica.
Quem está a morrer de sede quer água, e quem lha dê ou prometa dar-lha, e não ouve quem só lhe oferece copos e garrafas vazias.
Mas a culpa não é dos que desviam a água, não é dos alentejanos e dos que só pensam na sede que têm.
NOTA FINAL:
Este texto não branqueia nem desvaloriza a existência de um pensamento fascista, xenófobo, racista e machista que sustenta ideologicamente a extrema-direita, nem aqui se legitima a sua defesa, nem a sua escolha. Nada legitima o ideário fascista ou o nazista.
O que aqui escrevi parte da convicção de que a maioria do eleitorado que elevou o candidato de extrema-direita ao 3º lugar é um eleitorado que expressou nele o seu descontentamento, sem pensar na ideologia subjacente e na força que o seu voto lhe confere.
É esse eleitorado que é preciso respeitar, primeiro; e depois ouvir; e depois compreender; e depois resolver-lhe os problemas, porque a água é essencial à vida.
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