17 janeiro 2023

ERA UMA VEZ A ESCOLA..., CONTADA POR UMA VELHA QUE AOS 5 ANOS DECIDIU SER PROFESSORA

Era uma vez uns responsáveis políticos que olharam para a sociedade, viram as desigualdades que a incompetência deles não resolveu, e decidiram que caberia à Escola fingir que somos todos iguais e temos todos os mesmos direitos. Não somos. Não temos. E também já não temos Escola, porque quase nada dela sobrou!

Durante décadas, vivemos num sistema asfixiante em que só era doutor o filho do doutor, e em que licenciatura era sinónimo de bom salário, cabendo aos pobres aprender ofícios mal pagos e sem valor.
Para anular esta injustiça, a democracia abriu, e bem, a Escola a toda a gente, e foi alargando progressivamente a escolaridade obrigatória, mas não cuidou de encontrar respostas para a diversidade trazida pela massificação. Pior que isso, destruiu o bom ensino profissional existente, a pretexto de que toda a gente, se quisesse, deveria poder chegar à universidade. Foi um dos primeiros erros, que estamos já a pagar, porque faltam pedreiros, mecânicos, electricistas, canalizadores, que por acaso ganham bem melhor do que muitos professores, médicos ou enfermeiros.
Coitados dos actuais alunos que querem aprender com seriedade uma profissão! Têm de frequentar cursos profissionais desprestigiados, onde infelizmente desembocam sem travão nem direcção os que não têm vocação nem motivação para nada.
E coitados dos alunos que cedo na vida ousam sonhar com um ofício! A Escola adia-lhes o sonho e obriga-os a manterem-se num percurso comum, rouba-lhes anos da vida que querem ter, quantas vezes levando a que talento e vontade fiquem  pelo caminho, com perdas e danos irreparáveis!
Obrigados a uma Escola que não se adequa à sua vocação e às suas capacidades, o que resta a muitos miúdos senão arrastarem para as salas de aula o desinteresse, a desmotivação, a frustração ou os maus modos ou a agressividade? Que ironia, serem simultaneamente vítimas e culpados da desgraça!

Mas, então, que resposta se conseguiu encontrar para esta diversidade e esta amálgama indiferenciada de mundos?
O nivelamento por baixo! A auto-negação da Escola!

Apesar de tudo, durante muitos anos, a dita Escola ainda conseguiu resistir, e cumprir-se diariamente.
Anos houve em que em que brotaram Clubes e actividades espontâneas, cresceram projectos arrojados, se formaram gerações de vários níveis sociais, e se criaram laços entre professores e alunos. Havia tempo para tudo, e tudo se fazia com prazer, por prazer. A Escola vibrava e cumpria com vontade a sua função.
A partir do momento em que o nivelamento por baixo se tornou regra cada vez menos velada, a Escola deixou de ser um verdadeiro ascensor social.
Querendo ser o que deveria ser (mas já não era) conseguiu deixar de ser o que era e, desastradamente, desarranjou-se para se afastar cada vez mais do que deveria ser, a ponto de não conseguir ser útil a quem mais dela precisa. E sangra desumanamente os aparentes responsáveis pelo seu falhanço, ou seja, os professores, e sangra desalmadamente as cobaias das suas delirantes mirabolâncias, ou seja, os alunos e as famílias.
Sejamos realistas, o elevador social está há muitos anos nos gabinetes de explicações e no ensino privado, pagos por quem pode. Para os outros, a Escola não é ascensor, é um foguete molhado: foi feito para subir, mas não vai a lado nenhum.

A sociedade mudou muito, e em nome dos direitos, da inclusão, da tolerância e da compreensão, em nome do respeito pela diversidade, desapareceu a exigência, desvalorizou-se o saber-estar, o saber-ser, a disciplina, o respeito...;  a própria tolerância se gastou por excesso de uso.
Inventou-se uma Escola condescendente com mau comportamento, insolência e indisciplina. Sempre em busca da suposta igualdade de oportunidades, transformou-se a Escola num permanente laboratório de  modas pedagógicas e ideias peregrinas. Retirou-se-lhe estabilidade, coerência e sossego, e sem isso o conhecimento e o saber foram sacrificados, desvalorizados, afastados.
A pretexto da modernidade e das novas exigências laborais, infestaram-se as escolas de tecnologia de valor pedagógico inflacionado, como se sozinhas originassem o acto de ensinar e de aprender.

As novas correntes das ciências da educação, da psicologia, da pedagogia, colocando com justeza a criança no centro das atenções, alimentaram as mudanças estruturais na 
Escola e na sociedade, desvalorizando a gravidade das faltas de educação,  o desrespeito e a ditadura da criança sobre o adulto,  conduzindo à perda de autoridade parental, educativa e escolar. Palavras como "exigência" ou "rigor" ou "esforço" ou "trabalho" ou "regras" foram rejeitadas como se tivessem lepra, porque se tornaram símbolos de um modelo de Escola considerado ultrapassado e, reconheçamo-lo, cada vez menos compreendido, desejado ou aceite. 

Por outro lado, o famigerado capitalismo selvagem transformou os lares em dormitórios cansados, onde falta tempo, disposição e paciência aos pais para educar e acompanhar os filhos no seu crescimento, como gostariam e deveriam. Compensam-nos com presentes e com uma capitulação perante birras e caprichos e faltas de respeito, que desistiram de corrigir ou que, pior ainda!, já nem sequer conseguem identificar como inadmissíveis.
Na prática, esta atitude não é muito diferente da adoptada por alguns professores, quando prometem prometem bombons ou distribuem chocolates para premiar bom comportamento nas aulas...
A uns e a outros tem faltado a coragem, a força e a firmeza para dizer NÃO, para imporem a sua autoridade e para se fazerem respeitar. Todos cederam, e todos perdem, de um modo ou de outro.

O que é certo é que a Escola se degradou, por culpa dos pais (acharam os professores), mas sobretudo por culpa dos professores, acharam os pais e a tutela; e para combater a incompetência de uma minoria, passou-se a desconfiar de todos, e da sua capacidade para exercer com profissionalismo a função.

Devagarinho, à docência foi sendo assim roubada liberdade e legitimidade para gerir a sala de aula e sem elas a dignidade no exercício da profissão saiu molestada. 
Quando a tutela decidiu desconfiar dos professores, retirou-lhes decisão e enterrou-os em prestações de contas trimestrais, mensais, semanais, diárias, aula-a-aula, aluno-a-aluno... Os professores foram reduzidos a intelectuais da burocracia, obrigados a fundamentar e justificar tudo, em horas inglórias de elaboração de projectos, relatórios, planos e actas inúteis, sorvedouros de tempo, da energia e da disponibilidade mental e emocional de que tanto precisam para darem o seu melhor na sala de aula. A tutela 
infernizou-lhes a vida, e eles consentiram. Desistiram? Esqueceram-se de ter garra para se impor? Pouparam-se? Anularam-se?

Em sentido contrário, aumentou a falta de exigência e de rigor na formação-base de professores.
Há muitos anos que os melhores estudantes não querem ser docentes. Não é de agora!
Quantos se tornaram professores porque não conseguiram ser mais nada? Quantos, nos últimos anos, tendo classificações que lhes abririam outras opções, escolheram ser professores, por vocação e convicção e vontade de mudar o mundo?
Há quanto tempo as Escolas Superiores de Educação aceitam alunos com médias de 10, ou menos? 
Quantos destes jovens se tornaram professores sem conseguirem eliminar erros científicos de palmatória que já levaram do ensino obrigatório e que às escolas trouxeram de volta, contribuindo, também eles, para a degradação da qualidade do ensino? Mas parece que ninguém viu as consequências que se adivinhavam.

Nos anos 80, nos velhos liceus renomeados Escolas Secundárias, os professores recém-saídos das universidades, “provisórios” inexperientes, humildes na sua condição, eram olhados de soslaio pelos mais velhos, por serem novatos, e precisavam de mostrar o que valiam para merecerem ser tratados como “colegas”, palavra-senha para entrada no mundo de sabedoria e respeito inerente ao professor.
Diferentemente, nos anos 2000, alguns dos novos professores saídos de Escolas Superiores de Educação chegavam 
de nariz empinado às escolas, cheios de teorias, inchados de auto-convencimento, e passando desdenhosos atestados de ignorância  aos “velhos”, que consideravam incapazes de ver a Escola com novos olhos.
Desconfio que alguns destes novos olhos "iluminados" só acrescentaram miopia a uma Escola que já não via muito bem ao perto, mas que agora também já não vê nada ao longe...

Com formações diferentes e perspetivas diversas sobre a Escola, os professores dividiram-se dentro das escolas e espalharam-se por mil sindicatos, umas vezes esperando deles a defesa de interesses directos, outras vezes apenas ao sabor de simpatias político-partidárias.
O clima de trabalho degradou-se, e as estruturas sindicais centraram a luta em questões monetárias e de carreira, no convencimento de que não era necessário batalhar por outras causas, porque nada faria abanar os fundamentos da sala de aula. Talvez por isso nunca se tenha ido ao fundo dos problemas, e, por exemplo, se tenha consentido sem protesto nessa clamorosa desvalorização do conhecimento e da formação que foi 
a desbonificação de tempo de serviço por obtenção de graus académicos acima das licenciaturas pré-Bolonha.

A verdade é que, apesar de todas as contrariedades, dentro da sala de aula, usando da sua autonomia, o bom professor ainda achava que se realizava, e que a sua competência, capacidade de trabalho, entrega, sensibilidade e sentido de responsabilidade eram suficientes para fazer acontecer Escola, e para que esta mantivesse a sua razão de existir. Porém, esta mesma autonomia permitia que o mau professor se sentisse ao abrigo de críticas e fiscalizações, confiante de que ninguém daria pelas suas falhas ou ousaria apontá-las.
Dentro da sala de aula, para o melhor e para o pior, cada professor ergueu a sua barricada. 

Todavia, aquando da 
divisão aberrante da carreira entre Titulares (os supostos “bons”) e Não Titulares (“a ralé”), a classe docente tremeu e revoltou-se. Quem não conhecia incompetentes promovidos a Titulares? Quantos dos melhores não se sentiram humilhados? Quantos conscienciosos prefeririam não ser Titulares? Quem não viu a arrogância a querer soltar-se, mesquinha, nas asas prepotentes da “Titularidade”?

E com a decisão de que o professor teria de ser avaliado para poder progredir profissionalmente abanaram os inseguros, tremeram os incompetentes, feriram-se os orgulhosos e a aula, Templo de Educação, viu-se exposta, vulnerabilizada, ameaçada, invadida.

A revolta geral e uma manifestação sem paralelo varreram aquela divisão da carreira, mas ficou uma avaliação de desempenho que permite as maiores injustiças, porque nem sempre se tem a hombridade e a humildade de reconhecer competência e autoridade aos pares, porque falta às vezes grandeza humana e profissional para elevar a avaliação acima de simpatias, antipatias, guerrilhas e contas por ajustar.
Acresce que, para, supostamente, evitar injustiças e garantir o rigor e a objectividade da avaliação, a tutela inventou a necessidade de se apresentarem (ainda mais) evidências de tudo e de mais alguma coisa. Não deve haver profissão mais escrutinada do que a de professor...
Ora, quem não conhece aquele avaliado que nunca deu um minuto a mais à Escola, mas que no ano em que é avaliado (justamente nesse ano, por acaso...) se desdobra em actividades, iniciativas e projectos? Quem é que não sabe daquele que nunca exerceu um cargo (porque nenhuma gestão lhe reconheceu capacidade para isso ou porque teve habilidade para lhe escapar), mas que consegue, em ano de avaliação, surgir como um paladino do voluntarismo, da entrega, da pedagogia e da didáctica, e engendrar grelhas e evidências mil e todo um folclore com que rasteira e ultrapassa quem anda há anos a deixar o cérebro, as tripas e o coração na escola?
Foi nisto que deu a avaliação de professores, e esta é uma das causas da desgraça.

Curiosamente, o que muitos dos meus colegas contestam não é bem esta injustiça, preferindo escolher como alvo as cotas para progressão na carreira, como se não fosse toda a orgânica da avaliação de desempenho que deve ser posta em causa, porque é ela que fere onde não deve, por assentar na mesma falsidade e inutilidade que arruína o sistema educativo no seu todo.
A avaliação de desempenho é apenas uma peça dentro de uma parafernal engrenagem mil vezes desmontada e remontada, com cremalheiras recauchutadas, calhas gastas, 
rodas fora do sítio e veios secos, tudo aprimoradamente envolto na incessante novidade, sempre trazida em lindo embrulho de modernidade, para que de fora se acredite que é bom, eficaz e mágico!
Acontece que a magia nunca passou de embrulhada, e não só não se eliminou a incompetência, como se desprestigiou e desmotivou a competência. É quase um milagre, mas ao contrário.

Admitamos que a complexa relação entre pares influencia muito do que se passa nas escolas, e tem na gestão escolar uma das suas mais peculiares expressões.
Defende-se hoje o regresso a um modelo de gestão assente no sufrágio universal dos docentes, como no passado se contestaram os colegas Presidentes de Conselho Directivo mais exigentes e capazes de criar equidistância em relação aos pares.
Não é verdade que houve Presidentes de Conselho Directivo eleitos por serem “uns gajos porreiros e que não chateiam”, em detrimento de candidatos mais completos e competentes, mas também, e por isso mesmo, mais rigorosos? E não é verdade que este tipo de eleição, baseada numa certa “conveniência”, deixou de poder acontecer no actual modelo de gestão?
E não é incontestável que o novo modelo de gestão deu aso a prepotência e autoritarismo?
Mas não é também indiscutível que os Diretores são, eles próprios, vítimas do desnorte da tutela, entalados entre o cumprimento da lei, o descontentamento dos professores, a indisciplina dos alunos, a pressão dos pais e a percepção do absurdo que tudo isto é? 
E não é ainda verdade que, para alguns de nós, nunca nenhum poder satisfaz, nunca nenhuma autoridade é reconhecida?
Parece-me ainda que alguma da contestação docente a este regime de gestão escolar resulta do não reconhecimento do direito e da legitimidade que outros membros da comunidade escolar (pais, assistentes técnicos e operacionais) têm, também eles, de escolher quem dirige a instituição a que estão ligados. Será
 sobranceria? Complexo? Medo de perda de poder? (Qual poder???)
Não sei. Mas sei de um sindicato que alberga todos os profissionais de educação, e sei de quem acredita que esta aliança conseguirá o que até hoje não se alcançou, porque, diz-se, “juntos somos mais fortes”
Resta saber se esta ideia de união não levará, depois, quando assentar a poeira, a uma diluição do nosso estatuto e à desvalorização da já pouco especial carreira especial dos professores. Vejo perigos.

Outra das queixas dos professores é a perda do seu poder de compra, que muitos compatriotas nossos consideram uma tentativa egoísta de obter privilégio em tempo de guerra.
Indiscutivelmente, todos deveriam ter direito a salário digno, mas acontece que proletarizar os professores, reduzir-lhes o poder de compra,  é privá-los de acesso à cultura e à actualização científica, indispensáveis para que possam ensinar com qualidade e abrir horizontes aos alunos. Não falo de motivação nem de felicidade nem de bem-estar nem de alegria no trabalho; falo de qualidade do ensino.
Num mar de famílias condenadas a viver com a indigência do salário mínimo, a Escola e os professores têm de ser olhados como a Esperança que abre perspectivas de um futuro melhor para as próximas gerações, e valorizados como tal. Ora isso não se consegue esvaziando o ar da bóia de salvação e enchendoa de areia!
Afinal, defender que um professor não deve ganhar melhor, porque há quem ganhe mal, é consentir que a Escola perca qualidade, e é prejudicar o futuro dos jovens, das suas famílias e do país. Não pode haver quem queira isso.
Nesta insanidade, só triunfaram os grandes grupos editoriais que, depois de canibalizarem a concorrência das pequenas editoras, colonizaram a Escola, oferecendo "papa feita" a professores exaustos, e uma miríade de materiais que abanavam os orçamentos familiares e agora sugam o Estado que somos todos nós, porque nada é de graça e somos  sempre os mesmos a pagar, de uma maneira ou de outra...

Se ao menos houvesse formação contínua de qualidade para os professores, neste deserto!
Se não a tivessem transformado num faz-de-conta obrigatório que pouco ou nada acrescenta profissionalmente...
Hoje, o caso mais gritante é o da Capacitação Digital Docente, que não ensina nada que a maioria não saiba já, e que não altera a iliteracia digital de quem não aprendeu por si ou com colegas, durante a pandemia, quando tivemos de descobrir como fazer para ensinar online.
Salvo honrosas excepções, a formação contínua é, admitamo-lo, perda de tempo e de dinheiro. Como a Escola. À imagem da Escola que pouco ensina aos alunos, a Formação Contínua pouco acrescenta aos professores.
E, no entanto, resistindo à impertinência, um professor culto, curioso, vivaz e actualizado é luz que se acende na vida de um miúdo. Já um professor formatado, cinzento, apático e abúlico é breu colado na cabeça dos alunos, mas é nisto que a tutela nos tem tornado, ao longo das últimas décadas.

O país e a modernidade não precisam nem querem que voltemos a uma Escola de medo, palmatória e reguada, a um Ensino de decorar e papaguear, nem é isso que eu defendo, mas a Escola não sobreviverá se não repensarmos todo o sistema educativo, reconhecendo e definindo que aos professores cabe ensinar, que os alunos vão à Escola principalmente para trabalhar e aprender, que às famílias cabe educar os filhos, e que todos têm de ter condições para que cada qual, no seu galho, faça o que lhe compete, sabendo que todos são seiva para a mesma árvore. Só assim haverá fruto. Só assim teremos, amanhã, gerações que saibam e possam cuidar si, de nós e do mundo.

Está mais que visto que, nisto da Educação, o mais fácil de resolver é a contagem integral do tempo de serviço e a progressão na carreira docente.
Difícil, mesmo difícil, é reestruturar a Escola, para que se reinvente e reencontre a sua função, a sua essência e o seu prestígio, e seja capaz de recuperar a alegria, a espontaneidade e a qualidade que perdeu.
Uma Escola que não permite a realização e o crescimento pessoal, profissional e familiar dos seus intervenientes, e que não serve a sociedade, não serve para nada.

(Obviamente, ter escrito este texto põe-me a jeito para levar pancada.)
(Obviamente, espero que não digam outra vez que o Mia Couto é que é o autor.)
(Obviamente, não aplico o Acordo Ortográfico.)

28 janeiro 2021

AS PRESIDENCIAIS E O ALENTEJO - 13 CAUSAS DO TERRAMOTO

AS PRESIDENCIAIS E O ALENTEJO -13 CAUSAS DO TERRAMOTO


Quando o Alentejo anda nas bocas do mundo é quase sempre por más razões. Azar o nosso!...
Fomos notícia na noite das Presidenciais, e durante alguns dias mais, e não estou satisfeita ("sastefêta", em alentejano) com o que ouvi.
Proponho que façamos juntos uma reflexão sobre as razões pelas quais o Alentejo mais profundo foi tão falado, ou seja: o que levou tanto alentejano a votar em André Ventura.

Na minha perspectiva, há motivos que não foram valorizados, e por isso enumerarei os que me parecem mais importantes:

1. Relativamente às eleições presidenciais, propriamente ditas:
a) As televisões deram mais tempo de antena a quem é telegénico e capta audiências, mais valor a um candidato do que aos outros. Os candidatos preocuparam-se mais em falar de um outro candidato do que do seu próprio projecto. Os comentadores políticos debruçaram-se quase sempre mais sobre um candidato do que sobre os outros.
b) Governo e Presidente da República desvalorizaram este acto eleitoral e desprezaram o voto de emigrantes, de confinados em lares, de quarentenados em casa e de isolados profilacticamente, talvez porque a vitória de Marcelo estava à partida garantida.
c) Os partidos políticos agiram segundo os seus próprios interesses:
O PS assobiou para o lado e colou-se a Marcelo, demitindo-se da responsabilidade de apresentar candidato próprio.
O PSD assobiou para o lado, e colou-se ao seu candidato natural, à partida já eleito.
O CDS nem para assobiar teve força.
Os partidos à esquerda do PS só olharam para os seus umbigos e as suas estratégias desfasadas da realidade, e não percebendo ou não querendo perceber o que estava a acontecerque os obrigasse a mudar de estratégia.
O PCP, outrora "dono" do Alentejo, onde pôs e dispôs, partiu e repartiu e ficou com a melhor parte, quando para isso tinha arte, encostou-se e foi-se apegando aos cargos autárquicos que conseguiu manter, criando clientelas sustentadas a troco de emprego em câmaras e freguesias, sem perceber que o seu eleitorado fiel foi desaparecendo na proporção em que morria, e sem se esforçar para conseguir chegar a um eleitorado mais jovem.

Para além destas miopias partidárias,

2) Nas últimas décadas, os sucessivos governos foram votando o Alentejo - e todo o interior do país - ao isolamento, ao esquecimento, ao subdesenvolvimento, virando a sua atenção para o litoral, com maior densidade populacional (mais eleitores...), mais dinâmica empresarial e mais emprego.

3) Há muito que o eleitorado português deixou de ser fiel a um partido. Essa fidelidade foi uma herança das clivagens ocorridas nos anos subsequentes à revolução de 1974, e que se foi perdendo à medida que os anos apagaram memórias, diluíram ódios e arrefeceram militâncias.
Os dados provam que a maioria dos cidadãos não vota sempre no mesmo partido; vai alterando o seu voto, em função das circunstâncias, das lideranças e, sobretudo, em função daquilo que pensa ser quem melhor vai ao encontro do seu desejo de melhores condições de vida.

4) É sabido que grande parte do actual eleitorado não conheceu as agruras que o Estado Novo impôs ao país, e principalmente ao Alentejo, pordemais explorado e empobrecido. Mesmo muitos daqueles cuja infância foi vivida com o retrato de Salazar na sala de aula não eram suficientemente crescidos para ter consciência do rigor do regime e para guardar memória política desses tempos negros.

5) Como nunca existiu um programa coerente para verdadeira integração das minorias na comunidade e no mercado de trabalho, consente-se que continuem no seu mundo próprio, à medida que se deixa alimentar a ideia de que vivem à margem da sociedade, de que são protegidas e de que estão imunes à autoridade policial e à justiça. E isto é mais gritantemente sentido no Alentejo interior, onde se concentram grandes comunidades ciganas.

6) Depois de décadas de abandono das terras e do fim da célebre reforma agrária, o Alentejo viu surgir grandes explorações agrícolas necessitadas de mão-de-obra, que não encontrou nos residentes. Os alentejanos, outrora carecidos de trabalho e obrigados ao sacrifício de serem explorados numa herdade qualquer, recusam hoje o trabalho duro ao sol e à chuva, sobretudo se puderem auferir de apoios no desemprego.

Quando isto acontece, e os empresários recrutam imigrantes baratos em busca de melhores condições de vida, a pacatez conservadora de aldeias e vilas é abalada, para desconforto e descontentamento dos residentes que olham os estrangeiros com a mesma desconfiança com que, nos anos 60, os franceses olhavam os milhares de portugueses residentes nos "bidonville", que tinham passado a fronteira a salto e procuravam uma vida melhor.

7) As gerações nascidas depois de 1974 cresceram livres e com algum conforto. Foram apaparicadas por pais que, tendo sido privados de uma infância digna, quiseram dar tudo aos filhos; tudo, menos valores e educação. À opressão da ditadura substituiu-se uma liberdade sem limites e que ninguém aceita que possa ser posta em causa.

8) A necessidade de aumentar o rendimento mensal das famílias e de garantir condições dignas empurrou pais e mães (já filhos da Democracia) para uma correria incompatível com o cumprimento da sua essencial e insubstituível cota-parte na educação dos seus próprios filhos, compensando-os com a satisfação de vontades e de caprichos e com a oferta de bens efémeros e materiais, o que não incomodou os poderes, já que contribuiu para alimentar um consumo que serve a Economia. Se quem sabe pouco não pode ensinar muito, menos ensina se não tem tempo...

9) A Escola, livre da tutela afunilante do Estado Novo, massificou-se, asfixiou-se na necessidade de garantir igualdade de oportunidades, enredou-se em funções que deveriam incumbir a outras áreas do Estado, à sociedade e às famílias, e foi desistindo de ser rigorosa e exigente. Aceitou relegar para segundo plano a sua principal função , que é ensinar, formar cidadãos esclarecidos.
A Escola de hoje ilude-se a si própria no seu igualitarismo, quando todos sabemos que os que podem pagar explicadores e centros de estudos ou colégios privados continuam a ter mais oportunidades que os de baixos rendimentos.
Na ditadura, a escola era um elevador social vedado aos menos favorecidos; a de hoje é uma fachada de onde se sai com diplomas de pouco conhecimento, pouca cultura, pouca curiosidade intelectual e pouca cidadania.
Disfarça-se esta perda da essência com a tecnologia, como se um computador e o acesso à Internet substituíssem a capacidade de resolver dilemas morais, bem como o valor do desenvolvimento do raciocínio e do discernimento, e fossem o mais importante para o desenvolvimento das capacidades sociais e intelectuais de um ser humano. A falta de um computador "apenas" destapa, acentuando-a, uma desigualdade que já existia e contra a qual não foi feito tudo o que era possível.

10) Os sucessivos governos falharam nas políticas económicas que, elas sim, ao garantirem empregos, e salários, deveriam ter há muito eliminado as profundas assimetrias que persistem após quase 50 anos de Democracia, adoçados até por milhões de fundos comunitários mal geridos por uns, bem aproveitados por alguns, mas desaproveitados para o essencial que era o desenvolvimento do país e a inerente melhoria da vida das pessoas.

11) As forças políticas surgidas nos últimos anos não foram capazes de não se encurralar a si próprias. Adoptaram muitas vezes causas que, por mais justas que sejam, não são as que a maioria das pessoas vêem como mais prementes. Quem não tem casa (ou a perdeu na crise), quem se sente indignamente tratado como se fosse coisa e abandonado pelo Estado não aceita que a prioridade seja que os animais deixem de ser coisas ou que lhes sejam construídos abrigos. Quem não tem dinheiro para carne ou peixe estará muito preocupado com os danos ecológicos de uma exploração agrícola? E isto não significa insensibilidade - é só uma questão de prioridades...

12) Acresce que, paulatinamente, anos após ano, os poderes instalados em torno do Estado e das autarquias minaram a democracia e a confiança nos principais agentes políticos.
Com mais ou menos poder, os partidos fecharam-se sobre si próprios, confinados à sua visão e aos seus interesses. Projectaram dirigentes oriundos das juventudes partidárias, gente com uma formação política superficial, impreparada e inculta mas desmedidamente ambiciosa, sem verdadeiro currículo na vida real mas que pôde ascender a cargos de liderança de topo, média ou intermédia.
Criaram-se casulos de políticos, empresas e famílias, incapazes de gerar a borboleta da honestidade, da competência, da lisura e sobretudo do interesse público, que é o de todos nós.
A corrupção, os processos judiciais intermináveis, os julgamentos adiados e as prescrições geraram nas populações uma revolta muda, um sentimento de insatisfação expresso em conversas com amigos, colegas ou familiares, e que só estava à espera de alguém que lhe desse voz.

13) A comunicação social, principal veículo de informação, há uns anos bem separava-se entre jornalismo sério e jornalismo tablóide, mas deixou que essa fronteira se diluísse, se apagasse até.
As três estações de televisão tendem a alinhar desde há anos com uma prática de superficialidade e de sensacionalismo que dantes condenavam no Correio da Manhã, e depois na CMTV. As audiências falaram mais alto do que a verdade, a objectividade e a qualidade.
Os pivôs de noticiários e os naipes de comentadores preocupam-se cada vez mais em fazer passar a sua opinião pessoal, não raro partidaria ou politicamente alinhada, a que têm direito, mas que não deveriam ter o direito de nos impingir. E com ela influenciam a opinião pública.
O futebol apoderou-se tanto da antena que os debates sobre ele duram mais tempo que os debates com os candidatos eleitorais.
Os programas de entretenimento, fúteis e superficiais, preenchem o horário nobre, relegando para horas inacessíveis ou para o canal 2 da RTP conteúdos relevantes, de temáticas "sérias", bom cinema ou teatro, e que poderiam contribuir para uma melhor e mais informada cidadania, e para um Portugal mais tolerante e mais aberto ao mundo.
Ao mesmo tempo que assistimos à morte de jornais de referência e à redução de vendas dos jornais e revistas sobreviventes, vemos crescer as redes sociais e a sua influência. Impuseram-se como veículos de difusão de todo o tipo de mensagem e onde tudo é permitido, reflectindo o carácter e o pensamento dos seus autores, nem sempre transparentes, nem sempre com fundamento, quase nunca solidamente fundamentados. O "Achismo" impera, e as intenções nem sempre são as melhores.
Apesar de chegarem (e interessarem) a uma minoria de cidadãos, as redes sociais ganharam o peso que foi perdido por uma imprensa responsável e de qualidade, com naturais consequências na nossa capacidade de formular e emitir opinião e de pensar o país e o mundo, numa perspectiva que olhe e tente compreender o presente à luz do conhecimento da História, da ciência e do pensamento crítico, com tudo o que eles têm para nos ajudar a compreender, a interpretar a realidade e a fazer escolhas conscientes e esclarecidas.

SOBRESSALTO

Nestas eleições, a votação no candidato posicionado em 3º lugar é muito minoritária, e expressou-se quase só no sigilo das urnas. São ainda poucos os que, abertamente, assumem a sua proximidade ao partido de extrema-direita, talvez porque, no fundo, tenham consciência de que há algo de estranho ou errado na sua escolha.

Os partidos e os responsáveis nacionais e locais ainda vão a tempo de perceberem que é preciso mudar a agulha, que é preciso dedicação à causa pública, verticalidade e honestidade no exercício dos cargos, de pensarem que têm de olhar para este assunto com a atenção que ele justifica e a preocupação que ele exige.

Achar que a culpa é dos alentejanos, dos pouco escolarizados e dos analfabetos políticos é um mau ponto de partida para a reflexão que se impõe.

Quem está morto de sede quer água e, se for preciso, bebe com as mãos; é pouco relevante que a água que lhe oferecem tenha sido comprada, roubada, ou que alguém tenha matado para a obter, porque a sede é uma necessidade irracionalmente básica.
Quem está a morrer de sede quer água, e quem lha dê ou prometa dar-lha, e não ouve quem só lhe oferece copos e garrafas vazias.
Mas a culpa não é dos que desviam a água, não é dos alentejanos e dos que só pensam na sede que têm.

NOTA FINAL:

Este texto não branqueia nem desvaloriza a existência de um pensamento fascista, xenófobo, racista e machista que sustenta ideologicamente a extrema-direita, nem aqui se legitima a sua defesa, nem a sua escolha. Nada legitima o ideário fascista ou o nazista.
O que aqui escrevi parte da convicção de que a maioria do eleitorado que elevou o candidato de extrema-direita ao 3º lugar é um eleitorado que expressou nele o seu descontentamento, sem pensar na ideologia subjacente e na força que o seu voto lhe confere.
É esse eleitorado que é preciso respeitar, primeiro; e depois ouvir; e depois compreender; e depois resolver-lhe os problemas, porque a água é essencial à vida.

16 janeiro 2021

Presidenciais: Portugal 2021 e França 2002

PRESIDENCIAIS: Portugal 2021 vs França 2002


Não aprendemos nada com a História?

Em 2002, a França tinha um Presidente de Direita (Chirac) e um Primeiro-Ministro socialista (Jospin).
Chirac candidatava-se a um segundo mandato presidencial.
Contra ele corria um candidato centrista (Bayrou), quatro candidatos de esquerda, e um candidato de extrema-direita (Jean-Marie Le Pen).
Em 2021, Portugal tem um Presidente de Direita (MRS) e um Primeiro-Ministro Socialista (Costa).
Marcelo candidata-se a um segundo mandato.
Contra ele corre um candidato centrista (Tiago Mayen), quatro candidatos de esquerda e um candidato de extrema direita (AV).
Em 2002, o candidato da extrema-direita foi o segundo mais votado, e obrigou Chirac a uma segunda volta.
De nada serviu que os candidatos da esquerda, juntos, tivessem muito mais votos que Le Pen.
Foi a primeira vez na história do país que nenhum candidato de esquerda chegou à segunda volta, e foi também a primeira vez que um candidato de extrema-direita o conseguiu.
Na 1ª. volta dessas presidenciais a taxa de abstenção foi a mais alta de sempre.
No dia seguinte, a França teve um sobressalto, e apercebeu-se do que estava em jogo, e de que o perigo da extrema-direita era real.
Na segunda volta, Chirac foi reeleito pelo seu eleitorado, e também pelo voto útil da esquerda, do centro e da direita, contra a extrema-direita.
Salvaguardadas as diferenças existentes entre um cenário e o outro, temo que, passados 19 anos, esta realidade se repita no nosso país.
Não aprendemos nada com a História?
Vejo as coisas deste modo:
Marcelo está, evidentemente, reeleito, com mais ou menos votos.
A questão, para mim, é:
Vamos deixar que a extrema-direita chegue à segunda-volta das nossas Presidenciais?
Vamos ficar em casa, desinteressados?
Ou vamos engolir os sapos que for preciso e votar na candidata de esquerda que reúne melhores condições para não deixar que a extrema-direita avance no nosso país, e ganhe peso para impor as suas ideias no governo do país?
Face a este cenário, e ao que está em jogo, não tenho dúvidas.
#AnaGomes2021




Nota: Nas Presidenciais francesas de 2017, a esquerda foi novamente afastada da segunda volta, que assistiu ao confronto Macron-Marine Le Pen.





30 novembro 2020

Pan-óptico

Ouvi há dias, creio que pela primeira vez, a palavra "pan-óptico" e lá fui fazer uma pesquisa para perceber melhor o que era.

Em traços largos, o Panóptico é um edifício-prisão idealizado por Jeremy Bentham (filósofo e jurista inglês) no século XVIII e consiste numa construção circular cujas celas têm uma janela para o exterior e uma porta para o pátio interior. No centro desse pátio situa-se uma torre de vigia a partir da qual um só guarda observa e controla todos os presos.

Parece fácil e barato, sobretudo em recursos humanos, mas não haverá muitos Panópticos no mundo porque a fase de construção é delicada e dispendiosa...

200 anos mais tarde, Michel Foucault (filósofo francês, entre outras coisas) transpõe o conceito de Bentham para a sociedade actual, ao falar de uma estrutura de controlo de acções em que medidas de vigilância invisíveis acabam por tornar o comportamento individual auto-controlado. Perante a omnipresente patrulha, cada sujeito tende a pôr-se nos eixos sozinho, assegurando o funcionamento automático do poder e das regras impostas.

Este é, claro, um resumo light do termo. Muito há para pensar em termos de todas as suas implicações na sociedade actual, por exemplo, ao nível do exercício de poder, da disciplina social e repressão e da perda de liberdades civis. 

Só me lembrei disto porque, por estes dias, me sinto pan-óptica. Tenho em mim mesma a prisioneira e o guarda, vivo simultaneamente na cela e na torre de vigia.

Meio perdida entre as horas a que posso sair e aquelas a que devo regressar - e em que dias se aplica cada horário - sinto que a visibilidade se torna uma armadilha. O relógio é um bem de primeira necessidade, mais do que a comida, até porque perco a fome só de olhar para as filas do supermercado. Vou à varanda para arejar e logo me mando para dentro, se faz favor!

E pronto, agora vou até ali à sala dar mais uma voltinha.

P.S.: Portugal tem um dos poucos edifícios pan-ópticos do mundo. É o Pavilhão de Segurança do Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda, inaugurado em 1896 e destinado a doentes vindos da penitenciária.

31 outubro 2020

COVID-19 _ MEDIDAS EXCEPCIONAIS (04 NOV.) - LITORAL ALENTEJANO: QUANDO SE APLICAM?

As medidas anunciadas hoje pelo Primeiro Ministro aplicam-se, a partir de 04 de novembro, em 121 concelhos portugueses, e serão avaliadas a cada 15 dias.

As mesmas medidas aplicar-se-ão em qualquer outro concelho desde que atinja mais de 240 infectados por cada 100 000 habitantes.

Nos concelhos do litoral alentejano, quantos infectados tem de haver, para que estas medidas se apliquem?
Fizemos as contas usando os dados do último recenseamento da população, o Censos 2011.

Nota: Em Sines e em Alcácer do Sal, a medida entra em vigor já no dia 04/nov.

Encontre a resposta na infografia abaixo:





13 outubro 2020

Três frases que me andam a encanitar

Não há palavras.

Querem ver que os iluminados autores dos diversos dicionários se esqueceram de incluir justamente aquela palavra que lhe fazia tanta falta na altura em que lhe puseram um microfone à frente. Agora ali está balbuciante, porque não há palavras para expressar a sua brilhante ideia.


Eu sou assim.

Ser assim ou assado é da natureza de cada um, até aqui tudo certo. Mas achar que isso por si só é bastante e legitima tudo já não me parece tão acertado.

No seu Tratado da Natureza Humana (1740), David Hume dizia "não é contrário à razão preferir a destruição do mundo inteiro a um arranhão no meu dedo" (tradução livre), resumindo assim a nossa tendência para o egoísmo primário, mas a empatia é um pilar importante da construção afectiva e social. Fazer tábua rasa disso deixa-nos alcandorados no nosso castelo de belas, porém curtas, vistas.


És lindo, tens um coração lindo.

Anatomicamente, pois talvez sim. De resto, não, não somos todos lindos nem temos todos um coração lindo. As nossas (boas?) intenções - as mesmas do "eu sou assim" - resvalam muitas vezes na curva da primeira adversidade do dia que ainda mal começou, e lá para as 23 horas já somos mais destroços do que obras de arte da natureza humana. É a vida a acontecer e dizerem-nos o contrário não ajuda à lucidez. 

09 outubro 2020

Idosos, Lares e Covid-19: A nossa culpa

Portugal pandémico, outubro de 2020.
O número de infectados por Covid-19 aumenta diariamente, há milhares de famílias em dificuldade extrema, mas a Federação Portuguesa de Futebol prepara uma dispendiosa candidatura com Espanha ao supérfluo e dispensável Mundial de 2030.
Os trapaceiros já esfregam as mãos de contentes, prontos para tirar o máximo proveito dos anunciados fundos comunitários; mas olham de lado para o aumento extraordinário de 10 euros numa pensão mensal de 275 euros.
A direita, como sempre, discorda de medidas sociais e de aumentos salariais por achar que agravavam as despesas do Estado e, preocupação maior, das empresas. Enquanto isso, Bloco de Esquerda, PCP e PS concretizam novo acordo orçamental em torno de emprego, subsídios, salários e pensões. 
As centrais sindicais agitam reivindicações. Médicos, Enfermeiros e respectivas Ordens protestam contra a DGS e o Governo, e discordam de quase tudo.
Perante uma pandemia em crescendo, (com números tão ou mais preocupantes que aqueles que levaram ao confinamento de março),  DGS e Governo conformam-se com deixar infectar os que tiverem de ser infectados e resignam-se a ver morrer os que tiverem de morrer, porque a economia, essa, não pode voltar a parar. 
Paulatinamente, o discurso foi mudando e a responsabilidade de conter a pandemia passou para nós, os cidadãos. Temos de ser responsáveis e respeitar as indicações da Saúde Pública, para conter surtos, evitar novos contágios e mais vítimas. 
E assim vamos.

Entretanto, nos lares de idosos, não param os surtos de Covid-19... Os idosos não saem à rua, mas o vírus vai ter com eles.

Os idosos estão confinados deste março, ora sem visitas, ora com uma única visita por semana, sujeita a agendamento prévio, limitada a um curto período de tempo, à distância e respeitando as recomendações da DGS (ainda bem!).
Há lares que, entre março e junho, confinaram os seus funcionários em turnos contínuos, dias seguidos, para limitar ao máximo o contacto com o exterior. Reduziram ou eliminaram as actividades previstas, com o mesmo objectivo. E fazem o que podem para proteger os seus utentes. Para prevenir possíveis contágios, sujeitam qualquer um que saia para uma consulta de rotina ou uma urgência hospitalar a isolamento preventivo de catorze dias. Catorze intermináveis dias e noites, fechado num quarto, contactando esporadicamente e por curtos períodos com o funcionário que entra para lhe prestar assistência.
Os telemóveis, a que "toda a gente" recorreu para quebrar o isolamento, e que poderiam ser um precioso instrumento de contacto, não o são para todos, porque muitos idosos não os sabem manusear. Alguns lares promoveram videochamadas, com as limitações inerentes ao facto de para isso ser necessário recorrer à ajuda de um funcionário que tem mil coisas a fazer.
O país desconfinou em junho, mas os lares de idosos continuaram "confinados". 
Estamos em outubro. Passaram sete longos meses, e não se vê fim a este desconfinamento. 
Não é visível que haja uma particular preocupação do Estado, da sociedade, sequer da comunicação social, com os efeitos demolidores que o confinamento prolongado está a ter na saúde mental destas pessoas, já de si mais fragilizadas pelo peso da idade.


Não duvidando do carinho e do cuidado que muitos funcionários dos lares colocam no desempenho das suas funções, também não há dúvidas de que a vida dos idosos nos lares é, desde março, muito mais triste, parada, desinteressante, desmotivante e solitária.

Sem os momentos privilegiados de contacto directo e presencial com familiares e/ou amigos, o quotidiano de um idoso institucionalizado tornou-se mais difícil e a sensação de abandono acentua-se e dói. Dói na alma e dói no corpo. E nestas condições o idoso fecha-se ainda mais sobre si mesmo.
Mesmo em tempos normais, os lares são parcos em actividades para atenuar o isolamento e a apatia (por exemplo, leitura, manualidades, jardinagem, utilização da Internet, actividade física e mental).



Ora a actividade física adequada ao idoso é importante para a sua qualidade de vida. A actividade física reforça o sistema imunitário, assim como apanhar sol anima o espírito e levanta a moral a uma pessoa. Mas um idoso numa cadeira de rodas, que estiver fisicamente impossibilitado de a manobrar, só apanha sol se o puserem ao sol.

Infelizmente, estas preocupações não são o forte dos lares, porque disponibilizar um tipo de assistência mais adequado e de maior proximidade, bem como proporcionar actividades, exige pessoal disponível e/ou qualificado, cuja contratação é muitas vezes adiada ou mesmo inviabilizada por limitações financeiras. 
É do conhecimento geral que a "actividade" quotidiana mais frequente dos idosos em muitos lares é ver televisão.
Na maioria dos casos, o racio funcionário/idosos ou é respeitado nos mínimos impostos pela lei ou, por malabarismos de gestão de recursos humanos, nem chega a sê-lo. 
Mas nunca ninguém se preocupou com isto. Ou não foi preocupação a sério. E continua a não ser. As entidades reguladoras são peritas na arte de "fechar os olhos"...

Na verdade, os idosos não são uma preocupação da sociedade, a não ser que os tenhamos na família ou no nosso círculo de amigos. E, mesmo assim, também sabemos que a voragem e as exigências da vida activa dificilmente se compatibilizam com a visita regular a um idoso.
Mesmo sem pandemia, isto é triste, injusto e indigno de um país que se quer desenvolvido e guiado por padrões europeus de qualidade de vida.

É por demais evidente que os lares (mesmo os "caros") estão longe de proporcionar ao idoso o final de vida a que um ser humano deveria ter direito.

Correndo o risco de cair em injusta generalização, tentemos perceber a que se deve esta situação, e como se explica:
Por impedimentos laborais e profissionais, muitas famílias de idosos institucionalizados não conseguem acompanhar, por dentro, o funcionamento do lar e nem se apercebem do que é e de como é o quotidiano da instituição.
Muitos dos que conseguem estar mais de perto da vida do lar, quando se  apercebem de algum problema de funcionamento ou de incumprimento contratual, inibem-se de reclamar (ainda que legitimamente) por medo de eventual retaliação sobre o mais fraco, ou seja, o idoso.
Alguns, descontentes com as contingências da vida que os forçaram a entregar um ente querido a estranhos, experimentam uma espécie de sentimento de culpa e, ainda que inconscientemente, adoptam mecanismos de auto-protecção, afastando-se, porque "olhos que não vêem, coração que não sente". 
E também há quem "deposite" o idoso no lar e se limite a pagar a mensalidade, achando que está cumprida a sua obrigação e que não tem de se interessar ou preocupar por mais nada.

E quanto à sociedade civil, aos partidos políticos, às organizações? Por que não têm nos lares uma prioridade?
Porque a vida activa está muito ocupada a ser activa. A vida activa preocupa-se com o mais imediato. Preocupa-se com o trabalho, o salário, as contas, a casa, o carro, os filhos, o bem-estar, as férias (se puder...) e, eventualmente, um seguro de saúde, umas poupanças para um azar. 
Na verdade, a vida activa tem vistas bastante curtas, e acha que a terceira idade fica longe, mesmo que "longe" seja já ao virar da esquina dos dias.

Os idosos nos lares não têm sindicatos, nem Confederações, nem Ordens, nem qualquer organização que os defenda. Não descem a Avenida da Liberdade em manifestações de protesto. 
Os idosos nos lares não lançam petições, nem fazem vigílias em Belém ou São Bento.
Os idosos em lares nem sequer entram na contabilidade dos partidos como potenciais eleitores... Nem as campanhas eleitorais quebram a monotonia dos lares!
Além disso, os idosos não são fotogénicos nem telegénicos. A lentidão dos seus gestos, a debilidade da sua voz, o ritmo do seu discurso não são compatíveis com os timings televisivos, e não fazem disparar audiências.
Os idosos  têm corpos deformados, múltiplas deficiências e dependências, e são pouco faladores. Até pode algum ser rezingão, quando entra num lar, mas rapidamente o menosprezam ou ignoram, e o reduzem à sua insignificância, fazendo-o perceber que "vozes de burro não chegam ao céu".  

Um idoso num lar não tem vida própria. Não tem vida. A única coisa que a sociedade consente a um idoso num lar é o direito de esperar pela morte. 
Quando é que um idoso é notícia? Quando é assassinado ou quando morre.
E a morte pode, realmente, chegar mais depressa, com a "ajuda" deste coronavírus. Daí serem tão irrelevantes as consequências da Covid-19 nos idosos, em particular nos residentes em lares.

Talvez tenha sido a pensar em tudo isto que, a 13 de março, os lúcidos 84 anos do meu pai chegaram à seguinte conclusão:
_ Eles inventaram isto [o vírus] para acabar com os velhos; não vês que os velhos só dão despesa...

Se um idoso chega a esta conclusão, e a verbaliza deste modo, é porque algo está mal na nossa sociedade. 
Por inércia, desinteresse, indiferença, cumplicidade ou responsabilidade,  somos todos culpados deste "está mal".

30 setembro 2020

"Os adultos? Nunca!"

"Os adultos nunca se portam mal.
E nunca são egoístas.
Eles nunca gritam.
E nunca choram.
Nunca interrompem.
Nunca dizem palavrões.
E nunca são trapalhões.
Nunca fazem caretas. 
E nunca se enervam.
Os adultos nunca se enganam.
Nunca fazem batota.
E nunca amuam.
Nunca se esquecem.
Nunca culpam os outros.
Nunca desarrumam. 
E nunca se atrasam.
Os adultos nunca falam com a boca cheia. 
E nunca arrotam.
Eles nunca se queixam... sobretudo ao acordar.
Nunca deixam nada por fazer.
Nunca perdem tempo. 
E nunca fazem lixo.
Os adultos são sempre bons.
Portanto devemos ser como eles.
Percebido?"

                   David Cali


Foi o que me ocorreu depois de ver o debate dos candidatos presidenciais dos EUA...