Portugal pandémico, outubro de 2020.
O número de infectados por Covid-19 aumenta diariamente, há milhares de famílias em dificuldade extrema, mas a Federação Portuguesa de Futebol prepara uma dispendiosa candidatura com Espanha ao supérfluo e dispensável Mundial de 2030.
Os trapaceiros já esfregam as mãos de contentes, prontos para tirar o máximo proveito dos anunciados fundos comunitários; mas olham de lado para o aumento extraordinário de 10 euros numa pensão mensal de 275 euros.
A direita, como sempre, discorda de medidas sociais e de aumentos salariais por achar que agravavam as despesas do Estado e, preocupação maior, das empresas. Enquanto isso, Bloco de Esquerda, PCP e PS concretizam novo acordo orçamental em torno de emprego, subsídios, salários e pensões.
As centrais sindicais agitam reivindicações. Médicos, Enfermeiros e respectivas Ordens protestam contra a DGS e o Governo, e discordam de quase tudo.
Perante uma pandemia em crescendo, (com números tão ou mais preocupantes que aqueles que levaram ao confinamento de março), DGS e Governo conformam-se com deixar infectar os que tiverem de ser infectados e resignam-se a ver morrer os que tiverem de morrer, porque a economia, essa, não pode voltar a parar.
Paulatinamente, o discurso foi mudando e a responsabilidade de conter a pandemia passou para nós, os cidadãos. Temos de ser responsáveis e respeitar as indicações da Saúde Pública, para conter surtos, evitar novos contágios e mais vítimas.
E assim vamos.
Entretanto, nos lares de idosos, não param os surtos de Covid-19... Os idosos não saem à rua, mas o vírus vai ter com eles.
Os idosos estão confinados deste março, ora sem visitas, ora com uma única visita por semana, sujeita a agendamento prévio, limitada a um curto período de tempo, à distância e respeitando as recomendações da DGS (ainda bem!).
Há lares que, entre março e junho, confinaram os seus funcionários em turnos contínuos, dias seguidos, para limitar ao máximo o contacto com o exterior. Reduziram ou eliminaram as actividades previstas, com o mesmo objectivo. E fazem o que podem para proteger os seus utentes. Para prevenir possíveis contágios, sujeitam qualquer um que saia para uma consulta de rotina ou uma urgência hospitalar a isolamento preventivo de catorze dias. Catorze intermináveis dias e noites, fechado num quarto, contactando esporadicamente e por curtos períodos com o funcionário que entra para lhe prestar assistência.
Os telemóveis, a que "toda a gente" recorreu para quebrar o isolamento, e que poderiam ser um precioso instrumento de contacto, não o são para todos, porque muitos idosos não os sabem manusear. Alguns lares promoveram videochamadas, com as limitações inerentes ao facto de para isso ser necessário recorrer à ajuda de um funcionário que tem mil coisas a fazer.
O país desconfinou em junho, mas os lares de idosos continuaram "confinados".
Estamos em outubro. Passaram sete longos meses, e não se vê fim a este desconfinamento.
Não é visível que haja uma particular preocupação do Estado, da sociedade, sequer da comunicação social, com os efeitos demolidores que o confinamento prolongado está a ter na saúde mental destas pessoas, já de si mais fragilizadas pelo peso da idade.
Não duvidando do carinho e do cuidado que muitos funcionários dos lares colocam no desempenho das suas funções, também não há dúvidas de que a vida dos idosos nos lares é, desde março, muito mais triste, parada, desinteressante, desmotivante e solitária.
Sem os momentos privilegiados de contacto directo e presencial com familiares e/ou amigos, o quotidiano de um idoso institucionalizado tornou-se mais difícil e a sensação de abandono acentua-se e dói. Dói na alma e dói no corpo. E nestas condições o idoso fecha-se ainda mais sobre si mesmo.
Mesmo em tempos normais, os lares são parcos em actividades para atenuar o isolamento e a apatia (por exemplo, leitura, manualidades, jardinagem, utilização da Internet, actividade física e mental).
Ora a actividade física adequada ao idoso é importante para a sua qualidade de vida. A actividade física reforça o sistema imunitário, assim como apanhar sol anima o espírito e levanta a moral a uma pessoa. Mas um idoso numa cadeira de rodas, que estiver fisicamente impossibilitado de a manobrar, só apanha sol se o puserem ao sol.
Infelizmente, estas preocupações não são o forte dos lares, porque disponibilizar um tipo de assistência mais adequado e de maior proximidade, bem como proporcionar actividades, exige pessoal disponível e/ou qualificado, cuja contratação é muitas vezes adiada ou mesmo inviabilizada por limitações financeiras.
É do conhecimento geral que a "actividade" quotidiana mais frequente dos idosos em muitos lares é ver televisão.
Na maioria dos casos, o racio funcionário/idosos ou é respeitado nos mínimos impostos pela lei ou, por malabarismos de gestão de recursos humanos, nem chega a sê-lo.
Mas nunca ninguém se preocupou com isto. Ou não foi preocupação a sério. E continua a não ser. As entidades reguladoras são peritas na arte de "fechar os olhos"...
Na verdade, os idosos não são uma preocupação da sociedade, a não ser que os tenhamos na família ou no nosso círculo de amigos. E, mesmo assim, também sabemos que a voragem e as exigências da vida activa dificilmente se compatibilizam com a visita regular a um idoso.
Mesmo sem pandemia, isto é triste, injusto e indigno de um país que se quer desenvolvido e guiado por padrões europeus de qualidade de vida.
É por demais evidente que os lares (mesmo os "caros") estão longe de proporcionar ao idoso o final de vida a que um ser humano deveria ter direito.
Correndo o risco de cair em injusta generalização, tentemos perceber a que se deve esta situação, e como se explica:
Por impedimentos laborais e profissionais, muitas famílias de idosos institucionalizados não conseguem acompanhar, por dentro, o funcionamento do lar e nem se apercebem do que é e de como é o quotidiano da instituição.
Muitos dos que conseguem estar mais de perto da vida do lar, quando se apercebem de algum problema de funcionamento ou de incumprimento contratual, inibem-se de reclamar (ainda que legitimamente) por medo de eventual retaliação sobre o mais fraco, ou seja, o idoso.
Alguns, descontentes com as contingências da vida que os forçaram a entregar um ente querido a estranhos, experimentam uma espécie de sentimento de culpa e, ainda que inconscientemente, adoptam mecanismos de auto-protecção, afastando-se, porque "olhos que não vêem, coração que não sente".
E também há quem "deposite" o idoso no lar e se limite a pagar a mensalidade, achando que está cumprida a sua obrigação e que não tem de se interessar ou preocupar por mais nada.
E quanto à sociedade civil, aos partidos políticos, às organizações? Por que não têm nos lares uma prioridade?
Porque a vida activa está muito ocupada a ser activa. A vida activa preocupa-se com o mais imediato. Preocupa-se com o trabalho, o salário, as contas, a casa, o carro, os filhos, o bem-estar, as férias (se puder...) e, eventualmente, um seguro de saúde, umas poupanças para um azar.
Na verdade, a vida activa tem vistas bastante curtas, e acha que a terceira idade fica longe, mesmo que "longe" seja já ao virar da esquina dos dias.
Os idosos nos lares não têm sindicatos, nem Confederações, nem Ordens, nem qualquer organização que os defenda. Não descem a Avenida da Liberdade em manifestações de protesto.
Os idosos nos lares não lançam petições, nem fazem vigílias em Belém ou São Bento.
Os idosos em lares nem sequer entram na contabilidade dos partidos como potenciais eleitores... Nem as campanhas eleitorais quebram a monotonia dos lares!
Além disso, os idosos não são fotogénicos nem telegénicos. A lentidão dos seus gestos, a debilidade da sua voz, o ritmo do seu discurso não são compatíveis com os timings televisivos, e não fazem disparar audiências.
Os idosos têm corpos deformados, múltiplas deficiências e dependências, e são pouco faladores. Até pode algum ser rezingão, quando entra num lar, mas rapidamente o menosprezam ou ignoram, e o reduzem à sua insignificância, fazendo-o perceber que "vozes de burro não chegam ao céu".
Um idoso num lar não tem vida própria. Não tem vida. A única coisa que a sociedade consente a um idoso num lar é o direito de esperar pela morte.
Quando é que um idoso é notícia? Quando é assassinado ou quando morre.
E a morte pode, realmente, chegar mais depressa, com a "ajuda" deste coronavírus. Daí serem tão irrelevantes as consequências da Covid-19 nos idosos, em particular nos residentes em lares.
Talvez tenha sido a pensar em tudo isto que, a 13 de março, os lúcidos 84 anos do meu pai chegaram à seguinte conclusão:
_ Eles inventaram isto [o vírus] para acabar com os velhos; não vês que os velhos só dão despesa...
Se um idoso chega a esta conclusão, e a verbaliza deste modo, é porque algo está mal na nossa sociedade.
Por inércia, desinteresse, indiferença, cumplicidade ou responsabilidade, somos todos culpados deste "está mal".